Leia as primeiras páginas de meu novo livro
Este é o "Prólogo a um panfleto fragmentário", texto de abertura de "Contra a vida intelectual, ou iniciação à cultura".
O livro está à venda na Loja do Diabo (e-book disponível), no Mercado Livre, na Shopee, na Livraria do Seminário e sei lá mais onde.
Prólogo a um panfleto fragmentário
Este livrinho é um panfleto, e por tão frágil compleição talvez não tenha maior vida que os males que aponta, descreve e vitupera.
A rigor sequer é livro, pois surge do arranjo impremeditado de intervenções minhas em redes sociais e blogs, às quais agora, irmanando-as a textos inéditos, dou fecho para remediar um pouco de sua triste orfandade. Não que não haja unidade entre os movimentos de ataque e defesa, avanço e recuo registrados aqui. Há, sim. Como há unidade no objeto em que mira e, quero eu, acerta.
Esse objeto é esquivo, contudo. Não é visível para a maior parte dos brasileiros, e repare que ao dizê-lo me restrinjo aos brasileiros interessados na discussão de ideias. É esquivo porém existente e perfeitamente identificável: a voga online de educação (ou autoeducação), que permitiu a disseminação da posição política de direita, acabou por acrescentar novos males aos já conhecidos malefícios da educação oficial brasileira e dos meios culturais de prestígio dominados pela esquerda. Entre esses novos males se contam a confusão de educação com doutrinação conservadora, autoridade intelectual com riqueza financeira, e a substituição da produção cultural autêntica pela louvaminhice dos “clássicos”, da “vida intelectual”, das “virtudes”, e por aí vai, tudo conjugado aos mais antigos — e aos mais novos, porque algorítmicos — meios de autopromoção e promoção mútua de uma súcia de empreendedores virtuais.
Ora, eu mesmo sou um empreendedor virtual. Não levanto o dedo em riste, mas levanto os olhos e descrevo o que vejo ao meu redor.
Na tentativa de descrever o fenômeno, cerquei-o por uns tantos lados, como quem à cata de uma galinha ora aparteia sua fuga por este flanco, ora por aquele, não saindo da refrega no galinheiro sem uns tantos arranhões e umas réstias de cocô nas mãos. Para isso fui cunhando termos, uns mais previsíveis (“vida intelectual como fetiche”), outros um pouco menos (“teologia da prosperidade intelectual”, “neopentecostalismo intelectual”, “didatismo kitsch”), à maneira de saltos desajeitados sobre a arredia ave, que permaneceu brava, mas se deixou tocar pelo menos por algumas de suas penas. Com esta publicação abandono o galináceo e lavo minhas mãos. Não as lavo como Pilatos, homem mais matreiro que eu. Lavo-as como os mendigos que se asseiam em fontes públicas, deixando à vista de todos uma porcaria que não era só deles, mas do pó deste mundo, mundo que é um pouquinho de todos nós.
Este ensaísmo de intervenção, com munição filosófica ligeira, prodigalizada à queima-roupa, e retiradas estratégicas em diferentes frentes de ação, justifica-se menos pelo objeto de seu ataque do que por aquilo que preserva, exercita e desenvolve: daí a iniciação à cultura a que alude o subtítulo. A cultura de que falo não é, claro, aquela massa amorfa que interessa aos antropólogos (qualquer documento da vida humana), nem a mera superestrutura simbólica contra a qual os marxistas voltam as armas da crítica, nem tampouco a Kultur dos humanistas alemães, com seu modelo formativo de homem livre. Ainda que esta última noção esteja parcialmente pressuposta em minhas reflexões (a cultura como cultivo do que em nós é humano), insisto na verdade em seu aspecto técnico, produtivo, artesanal. Cultura é pois aqui ars, tekhné, coisa de espírito que age criando.
Criadores criam, faladores desconversam.
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À frente o leitor encontrará cinco seções de textos. A parte I, “Vida intelectual como fetiche”, oferece o pano de fundo das demais e deve ser mesmo lida antes delas. “As armas do marketing & o público acuado” lida mais diretamente com o fenômeno do marketing digital; a parte III, em contraponto a essa pedagogia de fancaria, tenta sinalizar o que seria uma vida cultural mais livre e criativa, ao passo que a parte IV aponta algumas das “Saudáveis aporias” com que irá se deparar quem hoje no Brasil se expuser aos riscos do espírito.
A parte V, a mais extensa e importante, abandona o ataque direto e, agora pressupondo no leitor um grau um pouco mais elevado de consciência e vigilância de si, passa ao trato particular de algumas dificuldades inerentes à criação de algo singular, único, autêntico. O chamado do mal é muitas vezes aliciante, assim como são aliciantes a autoidolatria e autoindulgência a que os poetas em particular e os artistas em geral se entregam com tanta facilidade.
Ofereço, lá, uma “Literatura para covardes”. A ambiguidade é intencional e produtiva. Por um lado afirmo que em toda atividade literária há um elemento de covardia e capitulação — e nesse sentido a literatura, toda ela, é literatura para covardes. Por outro lado afirmo alguma bravura ou tenacidade a ser conquistada por todo verdadeiro criador, na redação de poemas e romances como em tudo mais — e nesse sentido a literatura vadia e deambulatória de meu ensaísmo será literatura para covardes à revelia de sua covardia, pedra de tropeço para aqueles que ainda temem o prazer das palavras e não se arriscam ao livre jogo delas. Lá se verá que aqueles que se permitem sofrer uma influência mais profunda da cultura também necessitam vigiar-se para não baratear o Espírito. Acossa-os os mesmos problemas que acossam o aventureiro de marketing digital, só que num nível mais sutil e elevado de criação.
Nenhum texto da parte V deve ser interpretado isoladamente. Assim, é de se esperar que o leitor tolere a possível extravagância de algumas afirmações particulares.
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Ao abranger num olhar único os textos curtos e vários que compõem este volume, assumo a temeridade de sugerir um baixo contínuo a soar sob suas notas mais salientes: a conquista da naturalidade. A incompreensão ou mistificação da vida intelectual que ataco é, se tomada por essa mirada, uma crise de inconsciência, uma incapacidade crônica de sequer aspirar à naturalidade, à espontaneidade educada. Está em jogo, como se vê, o problema da genuína personalidade, ainda que bem lá no fundo — o problema de ser incontroversamente quem se é. Paro, contudo, a poucos metros do frágil biombo de enganos que encerra esse problema. Prometo não me aventurar até lá, pois já nos bastou a caixa de Pandora. Orgulhosamente evito teorizar com espírito de sistema, e a menção feita aos desafios de consecução da naturalidade e de construção de uma personalidade autêntica objetiva apenas instigar a atenção de quem me lê, a fim de que assim me leia melhor. A unidade deste livro depende, em uma medida bem além da usual, da inteligência do leitor, a quem não peço boa vontade, mas do qual cobro incômodo.
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Não posso concluir este prólogo, que eu queria fosse bem combativo mas nem está soando tanto assim, parece, sem dizer palavra sobre um livro célebre.
Como afirmo num dos textos, Olavo de Carvalho está na fonte de muitos esforços educacionais independentes em ambiente online. Uns poucos desses esforços, dirigidos por alunos seus, são respeitáveis. A maior parte, todavia, prendeu-se a uma leitura desvirtuadíssima, por mais virtuosa que se pretenda, do clássico livro de Pe. Antonin-Gilbert Sertillanges, A vida intelectual (1921). Olavo afirmou que esse livro “decidiu o curso da minha vocação”. E é certo que a reminiscência viva dessa leitura informou as suas iniciativas pedagógicas desde a década de 1980.
Que posso dizer do livro de Pe. Sertillanges? Tenho de primeiro observar que comentá-lo é atividade muito acima daquela a que me entrego neste volumezinho. A distância que o separa dos cursos de “vida intelectual” e congêneres, hoje muito comuns, é a mesma que vai entre uma gravura de Dürer e sua cópia executada por mim. Meu juízo, de todo modo, é que esse livro se torna útil para quem já se aplica a tarefas intelectuais, para quem já adquiriu o hábito de satisfazer suas curiosidades, que na verdade não serão vãs, antes necessárias. Será útil a quem chegou a se arriscar à criação de algo, portanto. Essa pessoa poderá então ampliar sua margem de ação e alcançar maior conhecimento e domínio de si.
Ao só aspirante a estudioso, artista, cientista, filósofo, o texto de Pe. Sertillanges poderá engendrar vícios, à maneira de um livro de receitas de bolo que fosse consultado pormenorizadamente por quem só conhecesse doces através de imagens em livros, nunca os tendo provado. Por isso, em “O trabalho criador”, o único texto em que invoco diretamente esse famoso manual, chamo atenção para um aspecto pouco prezado dele, o qual, se bem meditado, poupará ao iniciante equívocos e mal-entendidos.
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Este livro vai para a estante dos volumes cujos autores teriam preferido não escrevê-los. Se alguém porventura encontrar nestas poucas páginas oportunidade para meditar de forma menos ligeira sobre a finalidade da educação e da criação intelectual, ou para avaliar o quanto se deixou levar pelos imperativos do momento e, assim, reconsiderar a possibilidade de uma experiência mais original de sua própria capacidade de conhecer, o autor não só se dará por satisfeito como também beberá doze latinhas de cerveja profundamente comovido pelo sentimento de que a vida vale a pena, é bela, graças a Deus.
São Luís,
nov. 2023–fev. 2024.