Meu livro-confusão
Em "Contra a vida intelectual, ou iniciação à cultura", não ataco apenas figurões da nova direita. Ataco a própria vida intelectual: quanto mais autêntica, mais perigosa ela é.
Para ensinar, muitas vezes é preciso desistir de ser pedagógico. Essa desistência está na origem deste livro, que já pode ser comprado na Loja do Diabo e em outras paragens:
Afinal, Contra a vida intelectual, ou iniciação à cultura não só é um livro-confusão, um livro-gritaria-de-feira, como é também propositalmente confuso, pelo menos segundo o modo de ser confuso que vejo – por favor, não levem a comparação além deste aspecto modesto – em Guide to Kulchur, de Ezra Pound, que chego a citar numa página. O poeta e ensaísta Pound, quando punha a fantasia de professor Pound, era desnorteante. Começa, já no título, a corromper a “culture” e a trazê-la até uma prosódia bem própria, idiossincrática. Ele sabia que às vezes é preciso desmontar expectativas, é preciso desnortear para educar.
Na tentativa de flagrar determinadas falsificações da vida intelectual hoje imperantes nos novos ambientes de educação on-line à direita política (e também nos velhos ambientes à esquerda, porém de modo diverso), escrevi um livro que, literariamente, formalmente, tem algo da obra de Hélio Oiticica. Por esse motivo, vejo nesse livro ao mesmo tempo confusão formal, estrutura de mosaico, entrudo do fim do mundo, grito de chamado a uma vivência mais natural da cultura, despida dos penduricalhos da vida intelectual. Este livro é o meu parangolé.
Acho que a muita gente hoje no Brasil faria bem vestir um parangolé. Como não receito aos outros veneno que eu não tenha primeiro administrado a mim mesmo, vou nesse livro aos poucos vestindo um parangolé, à medida que nas duas primeiras partes ataco festivamente a nova direita brasileira no que tem de mais risível e careta em seu trato com a “vida intelectual”, para daí aos poucos ir me despindo dele, nas partes finais, progressivamente mais densas e sérias, nas quais já não ataco apenas as contrafações de vida intelectual, mas a vida intelectual em si mesma.
A vida do espírito pode ser uma danação. O distanciamento em relação aos objetos da cultura sobre os quais refletimos, o recuo civilizacional que deflagra nossa capacidade de reflexão (um debruçar-se para fora), pode acabar nos conduzindo a uma incompreensão dos processos naturais que possibilitam emergir uma civilização. Começaremos assim a refletir sobre experiências que já não temos mais, sem termos sequer nos dado conta disso. Falamos da vida e já não a vivemos. Se num dos primeiros textos do livro digo a propósito da nova direita que, “Em momentos de crise, à falta de verdadeiros intelectuais, falamos muito de intelectualidade”, já num texto da parte final falarei, em âmbito mais alargado, sobre “o verdadeiro mal-estar da civilização”:
No universo humano em geral, mas especialmente em suas zonas mais elevadas, a naturalidade é coisa que só se conquista com muito esforço. E é por isso que todo grande criador passa períodos prolongados de tristeza. Está ciente da culpa que contrai ao criar. É a culpa de quem faz o mundo imaterial avançar sobre o material, adicionando mais e mais camadas de impossibilidade àquilo que se almeja como possível. Nada freudianamente, esse é o verdadeiro mal-estar da civilização.
A última e mais extensa parte do livro se chama “Literatura para covardes”. É nela que centro meu ataque à vida do espírito. É nela que irrompem, em contraponto, as artes marciais. É nela que busco compreender Mishima, samurai e homem de letras. É nela que me insurjo contra o Poeta, esse coitadinho que nos pede confetes. É nela que faço o elogio da força física. E é nela que, guiado pelos contos de Chalámov, peço atenção à dignidade metafísica do corpo humano. Consciente de estar cantando as vantagens da intranscendência e de estar fazendo o papel de advogado do diabo, não me esquivo de escrever algumas páginas sobre o pai da mentira.
Mas “literatura para covardes”, hein – qual é o parangolé?
Sabedor de que muita gente acabaria por compreender essa expressão de maneira muito unilateral, logo no “Prólogo a um panfleto fragmentário” escrevi esta advertência:
A ambiguidade é intencional e produtiva. Por um lado afirmo que em toda atividade literária há um elemento de covardia e capitulação – e nesse sentido a literatura, toda ela, é literatura para covardes. Por outro lado afirmo alguma bravura ou tenacidade a ser conquistada por todo verdadeiro criador, na redação de poemas e romances como em tudo mais – e nesse sentido a literatura vadia e deambulatória de meu ensaísmo será literatura para covardes à revelia de sua covardia, pedra de tropeço para aqueles que ainda temem o prazer das palavras e não se arriscam ao livre jogo delas. Lá se verá que aqueles que se permitem sofrer uma influência mais profunda da cultura também necessitam vigiar-se para não baratear o Espírito. Acossa-os os mesmos problemas que acossam o aventureiro de marketing digital, só que num nível mais sutil e elevado de criação.
Essa última frase comunica um pouco da comiseração que sinto por quem, dotado de alguma inteligência, todavia se deixou levar pelas facilidades desse novo modismo da cultura brasileira, a “vida intelectual”, e suas armadilhas correlatas, como a “teologia da prosperidade intelectual”. Sim, condeno a “confusão de educação com doutrinação conservadora, autoridade intelectual com riqueza financeira, e a substituição da produção cultural autêntica pela louvaminhice dos ‘clássicos’, da ‘vida intelectual’, das ‘virtudes’, e por aí vai, tudo conjugado aos mais antigos – e aos mais novos, porque algorítmicos – meios de autopromoção e promoção mútua de uma súcia de empreendedores virtuais”. Mas veja bem. Se é verdade que ataco — inclusive apontando nomes —, também é verdade que ataco com espírito de festa, com espírito de quem chuta o pau da barraca, de quem limpa a taba para a próxima cauinagem, e não como quem pretendesse apenas tripudiar sobre os outros. “Ora”, escrevo lá, “eu mesmo sou um empreendedor virtual. Não levanto o dedo em riste, mas levanto os olhos e descrevo o que vejo ao meu redor”.
A “iniciação à cultura” que pratico nesse livro não está em ensinar isto ou aquilo ao leitor, mas em familiarizá-lo com os dilemas fundamentais da cultura e da criação intelectual em sentido amplo. Por isso o livro é dedicado “Ao leitor ainda capaz de desesperar-se”. Eu sei que você ainda é capaz. Eu sei que você saberá aprender o que eu mesmo não sou capaz de lhe ensinar.
Puta caretice, essa é a palavra. Dá umas saudades do contestatário século XX, da irreverência, da criatividade artística, do amor à cultura e ao povo.