Um livro que veio até mim
Como surgiu meu novo livro; como o estudo pode ser caminho de danação; o que esperar da cultura brasileira: uma entrevista.
Leônidas Pellegrini, da Revista Esmeril, enviou-me algumas perguntas sobre meu novo livro, Contra a vida intelectual, ou iniciação à cultura. Reproduzo abaixo as perguntas e respostas. Matéria originalmente publicada no site da revista.
Revista Esmeril: Como foi gestado seu livro Contra a vida intelectual? Como surgiu a ideia de escrevê-lo?
Ronald Robson: Há livros que vêm até nós, não somos nós que vamos até eles. Este é um caso. Você ouvirá com alguma frequência romancistas falarem como os seus personagens tomam vida e seguem um destino próprio, quase à revelia dos autores. Você não ouvirá com tanta frequência ensaístas dizerem coisa similar, mas saiba: ao escritor dedicado à discussão de ideias também acontece isso, e assim as ideias e experiências às vezes nos puxam numa direção impremeditada. Sou sincero quando digo no “Prólogo” de meu livro que preferiria não o ter escrito; preferiria ter centrado atenção em outros projetos. Mas não. Tive de reagir ao que se apresentava diante de meus olhos. Ao ter passado anos fora de redes sociais (e já caí fora de novo), não poderia imaginar que toda uma geração de novos intelectuais, ou pretensos intelectuais, vinha se formando da maneira mais estúpida possível em meios conservadores, católicos, em larga medida influenciados por Olavo de Carvalho, filósofo determinante para mim. E não imaginava que gente de alguma inteligência e talento poderia dar tanta corda a embusteiros. Comecei a ficar constrangido, por exemplo, ao ouvir repetidas vezes, e até de pessoas que respeito, que este ou aquele mané com centenas de milhares de seguidores era, de todo modo, uma influência positiva por difundir o Evangelho e atrair pessoas para os estudos, apesar deste ou daquele excesso no emprego do pior tipo de marketing digital, apesar de estar barateando acintosamente a cultura de que lança mão para se enobrecer e ganhar dinheiro. Fui assim reagindo aos poucos, com um post aqui e outro ali, este ou aquele texto na minha newsletter, e em anotações privadas. Reuni o material e notei que ele compunha uma estranha família com outros textos meus, dois deles a datar de quinze anos atrás, e outros, mais recentes e inéditos, dedicados à crítica da falência moral que vejo sempre rondar qualquer autêntico criador, em especial escritores, daí eu falar em “literatura para covardes”, da covardia que acossa o homem de letras. O livro, como você pode perceber, aprontou-se por si próprio. Só me coube apurar o texto e dar nome ao conjunto.
Revista Esmeril: Assim que seu livro foi lançado, houve leitores que, ao começarem a lê-lo, consideraram que ele seria uma espécie de “Imbecil Coletivo” sobre a nova direita brasileira. Comente a respeito disso.
Ronald Robson: Entendo a comparação, mas tendo a recusá-la. Olavo de Carvalho lidou na década de 90 com um material que, para todos os efeitos, era bem melhor que o material com o qual lido. Em O imbecil coletivo ele estava se batendo com Leandro Konder e sua turma, com gente que em geral tinha obra, que tinha bibliografia, gente que poderia estar errada e até escandalosamente errada, cega de tanta ideologia, mas que era gente ainda naturalmente inserida no fluxo da cultura, do debate de ideias, ainda que um debate avacalhado. Não posso dizer o mesmo acerca das pessoas que habitam esses nichos on-line de “vida intelectual”, “formação do imaginário”, “temperamentos” e “virtudes”. É uma gente que, se sequer vislumbrasse por um instante o que é realmente liberdade criativa e o que é de fato a vida de escritor, de intelectual, de professor que não apenas repete palavras dos outros, tomaria um choque tão grande, mas tão pesado e traumático mesmo, que nunca mais voltaria a pensar nessas coisas. Para o cara que fica de falatório de vida intelectual, o intelectual de verdade, com todos os seus problemas e contradições, é uma espécie de cracudo, de pária, de bicho grilo que mais cedo ou mais tarde irá dizer na mesa de jantar alguma coisa desconcertante a ponto de mandarem as crianças correrem pro quarto. A nova direita brasileira, essa designação muito ampla mas precisa em sua inexatidão (ela diz algo do modo como o brasileiro médio lida frouxamente com política), imbecilizou-se antes de ter sequer aspirado a ser algo que preste. O velho imbecil coletivo representou o fim de uma intelectualidade de esquerda no Brasil que chegou a ter nomes respeitáveis, como Nelson Werneck Sodré e Antonio Callado. Já a ala pedagógica e pseudointelectual da nova direita não é o fim desastrado de uma bela promessa: é desde o nascimento um aborto.
Revista Esmeril: Mas seu livro vai muito além de percepções do fetiche e do mercadejo digital envolvendo a vida intelectual, certo? O que mais você explora nessa obra?
Ronald Robson: Pois é. Hoje há essa ideia dominante na direita de que, ao adquirir uma “formação intelectual”, a pessoa está se encaminhando naturalmente para uma vida melhor, mais equilibrada, mais concorde com a verdade. Pode até ser. Mas isso não ocorre de maneira tão reta assim. Será que não percebem que uma vida dedicada à cultura pode ao contrário trazer problemas e mais problemas, dificuldades e mais dificuldades para o indivíduo? Não percebem que pode ser até um caminho de danação? Há riscos e perigos por toda parte para quem se entrega em profundidade aos estudos. Esse fato é mascarado nesse cenário de empolgação esfuziante com ideias prontas acerca do que é bem viver e bem aprender. Para o homem leigo, o sacerdócio das letras é algo que o aproxima da vida de um monge, e sabemos como os demônios atacam de preferência os indivíduos de vida consagrada. O mal, principalmente sob a forma de soberba, está sempre cercando o escritor, o filósofo, o artista, e o conhecimento que possuem pode servir de reforço a muitos de seus vícios. E, de forma paradoxal, justamente desses vícios podem surgir arte e filosofia da mais alta qualidade! Às vezes medito na possibilidade de que o inferno esteja cheio de gente que fez obras que hoje nos ajudam a ir para o céu. Só esse fato já deveria nos dar muito o que pensar, já deveria fazer ver que a vida do criador intelectual mantém uma tensão quase insuportável com a verdade, com o bem. Por isso no livro começo atacando as falsificações de vida intelectual para em seguida, aos poucos, passar a atacar a própria vida intelectual, sim, a vida intelectual a mais autêntica, porque capaz de falsificar nossa existência e nos afastar de nossos bens mais fundamentais. Nossa civilização está fundada na possibilidade de que reflitamos de maneira distanciada, quase indiferente, acerca de seus próprios fundamentos. E assim começamos a falar dos fundamentos e já não os vivemos mais... Considero isso um problema insanável. O máximo que podemos fazer é tomar consciência dele.
Revista Esmeril: Passados os atuais furores e modismos envolvendo a vida intelectual, como você acredita que será o curso da produção cultural brasileira?
Ronald Robson: Um país que tem em atividade poetas como João Filho, Érico Nogueira e Renato Suttana me dá esperanças. Para mim, a principal trincheira cultural no momento não é tanto ideológica quanto linguística. A língua portuguesa desceu a um nível que não cabe imaginar mais baixo. Vejo hoje muita gente jovem que leu uns 50 bons livros de filosofia, o que já representaria uma cultura considerável, mas que não consegue se expressar num português minimamente decente. Vejo pessoas manifestarem preocupação com a nossa cultura sem serem capazes de realmente apreciar a prosa de um Freyre, de um Euclides, ou de gente viva como Alexandre Soares Silva e o Marcelo Backes de maisquememória (2007), ou ainda de autores mais novos como Fábio Gonçalves, que já mostrou ter elevada autoconsciência no emprego da língua (espero grandes livros desse cara). A língua dá o parâmetro básico pelo qual a pessoa irá compreender de forma mais complexa outras linguagens, das artes plásticas à matemática. Não adianta combater o MEC e ter a sensibilidade estética de um Bolsonaro, não adianta pregar virtudes se você as prega numa sublíngua de professor universitário viciado em linguajar acadêmico. Precisamos reaprender a falar, reaprender a escrever, reaprender a exercitar a liberdade que a língua nos propicia. Se conseguirmos isso, já terá sido muito. Como disse, estou esperançoso.
Muitíssimo obrigado, Ronald, pela lembrança do meu nome ao lado de gigantes como Érico Nogueira e Renato Suttana.
Agradeço por compartilhar a entrevista. Sua análise deve ser dura, mas absolutamente necessária. Creio que concordarei com os argumentos expostos no livro.