Ju Ginger e o seu quibe
De quando se comentou um livro que não escrevi e se falou de uma pessoa que não sou eu.
Talvez esta fosse uma daquelas ocasiões em que cairia bem lembrar esta frase pronta, cujo autor a maioria de seus citadores ignora: “Se olhares demasiado tempo dentro de um abismo, o abismo acabará por olhar dentro de ti”. Seria solene demais, contudo. É mais o caso de dizer que, quando você enfia a mão no esgoto, não tem o direito de se incomodar com a revolta de algumas baratas.
De um desses locais escuros e infectos, nos quais parecem também vingar débeis sinais de inteligência, vem ao meu conhecimento uma série de postagens de um ser humano chamado Ju Ginger (ou que assim se chama na internet). Até a semana passada, pelo que pude compreender de um áudio seu no qual a histeria só não é maior que a pura e simples ignorância, ela nada sabia a meu respeito, e na verdade sequer ouvira meu nome, no que estávamos perfeitamente quites. Mas uma semana lhe bastou. Não que ela tenha se dado ao trabalho de ler Conhecimento por presença ou Contra a vida intelectual, como seria de bom tom a quem cobra honestidade dos outros, já que me parece – só a mim? – que essa seria uma preliminar obrigatória antes de emitir opinião sobre um autor. Não. Mas ela fez a pesquisa de campo mais própria à capacidade verdadeiramente fascinante de seu cerebrozinho: pescou um trecho de texto meu aqui e doutro ali na internet, um trecho de vídeo acolá e doutro cá, e disso deduziu que só posso ser um misto de quibador com picareta.
Eu gosto de quibe, é verdade. Mas, no mostruário de salgados murchos e tortas já passadas que constitui a lanchonete mental de Ju Ginger (muitas lanchonetes têm à sua porta, aliás, esgoto correndo a céu aberto), confesso não encontrar algo que desperte meu interesse, ainda mais que o cardápio apresenta uma sintaxe errante e um vocabulário verdadeiramente digno de quem, após muitos anos confessos de leitura de revistinha da Mônica, acrescentou outros tantos anos de nutrição em cultura de twitter. Mas ela afirma que roubei seu quibe: que, por exemplo, o ataque ao fenômeno da “vida intelectual como fetiche” (termo que, até onde sei, ninguém empregou antes de mim) teria primeiro surgido com ela e sua corriola, e que eu, retardatário e desonesto, teria apenas plagiado críticas mais argutas feitas primeiro por outros.
Ela diz não encontrar algures na internet, em data mais recuada, alguma manifestação minha de insatisfação com os rumos da direita cultural, ou pretensamente cultural, em redes sociais, com seus dispositivos de marketing digital e sua retórica de virtude pessoal versus mundo decadente. Mais ainda, extrata um áudio de uma entrevista comigo em meados de 2022 na qual, ao apontar determinados problemas no movimento cultural em torno de Olavo de Carvalho, eu teria deixado no entanto de descer o cacete nos proponentes da teologia da prosperidade intelectual (termo que, mais uma vez, emprego eu, não ela), o que constituiria prova de que só agora me inteirei do problema e corri a uma editora para me cobrir com as honras de um justo homem revoltado.
Para mim foi um regozijo que ela nada encontrasse com esse teor de minha autoria na internet. Apagar redes sociais é uma delícia, que provei pela primeira vez em 2015 e pela última e definitiva vez em 2023, mas delícia ainda maior é que alguém faça desse apagamento ocasião para equívocos que só não são mais divertidos porque são... equívocos. Embora eu não reivindique nenhuma prioridade ao apontar certos problemas da direita virtual (como afirmo explicitamente nesta conversa com Bruna Torlay), tanto mais por recordar – entre outras pessoas que conviria citar – que pelo menos desde 2019 ou 2020 Pedro Sette-Câmara já vinha irritando muita gente ao criticar a “direita do Condado”, o fato é que não foi ontem que comecei a reagir ao fenômeno a que dedico as duas primeiras partes de Contra a vida intelectual.
O texto que abre a primeira parte do livro, por exemplo, é uma reescrita e sensível ampliação de três posts no Instagram, no qual não tenho mais perfil. O primeiro deles foi ao ar no dia 17 de agosto de 2021, cerca de 40 dias após eu ter entrado na rede, tão notórios eram os erros que ali se propagavam. Consegui localizar a imagem que ilustrou a abertura do tríptico de ensainhos. Foi esta aqui:
Um ano depois, portanto em 2022 e mais ou menos à época da entrevista que a comunicadora de Telegram oferece como prova de minha desatenção ou conivência com vendedores inescrupulosos de cursos sobre nada, eu era insultado publicamente por Italo Marsili, que nos seus stories me chamou de invejoso e canalha, ao que acrescentou a ameaça de me dar um tapa (aguardo até hoje). Sua irritação nascia do texto “Por que humilhar seguidores traz mais seguidores?”, que divulguei então e que também – melhorado, espero – incluí no Contra.
Poderia também mencionar o texto “Contra o neopentecostalismo intelectual”, veiculado originalmente através da Pingback no dia 14 de abril de 2022, antes que o trouxesse para o Substack em data posterior. E poderia citar ainda outras intervenções minhas na internet que tornam patente isto: a minha familiaridade com a “vida intelectual como fetiche” não data de semana passada, como data o conhecimento de Ju Ginger a meu respeito.
Mas bastam esses exemplos, não só porque, como disse, não reivindico originalidade ao apontar um mal que brada aos céus e está na cara de quem não for demasiado cego, mas sim alguma acuidade em sua descrição, no rastreio de suas origens e, sobretudo, no apontar do contraste que o fenômeno faz com o que seria uma atividade criativa menos engessada, o que se revela o ponto central do livro. Daí o seu subtítulo, que a dona dos quibes parece desconhecer (não terá lido sequer a capa?): iniciação à cultura.
Uma das glórias e desgraças de quem se arrisca a publicar um livro é não saber o que o leitor fará dele: como o lerá, que conclusões irá tirar. Mas vejo agora que uma das maiores desgraças, esta sem nenhuma glória, advém não de leitores, mas de não-leitores como Ju Ginger, que julga meu livro não por o ter lido, mas pelo que outros têm dito a seu respeito e pelo que ela própria é capaz de fritar em sua lanchonete mental.
Era previsível. Por exemplo – e conto isso quase como uma fábula dos tempos que vivemos –, eu e meu editor tivemos de optar por uma capa que não fosse demasiado violenta. O livro já tenderia demais a ser lido apenas como um rechaço da “vida intelectual como fetiche”, com inteira desconsideração das reflexões mais urgentes contra a vida intelectual mesmo a mais autêntica, porque sempre problemática e potencialmente falsificadora da experiência humana (falo um pouco a respeito disso aqui). Se puséssemos uma capa que pesasse demais a mão no elemento de confronto, aí mesmo que todo o resto seria ignorado. Era preciso buscar uma solução mais sutil. E, bem ou mal, encontramos. Como o livro é em larga medida uma meditação sobre a cultura como coisa da ordem do fazer, do construir, achamos por bem operar uma alusão visual ao exemplo do marceneiro que dou na terceira parte do volume, chamada “Fazer cultura, i. e., cultivar o espírito”. Nasceu assim a textura em madeira que vai na capa, como vários leitores perceberam.
Mas eles perceberam isso e tantas outras coisas por terem lido o que escrevi, não se contentando com impressões de outrem. Eles saíram da lanchonete, foram à livraria e gostaram ou não gostaram do que viram. Mas viram algo. Não precisaram imaginar, como imagina Ju Ginger que minha crítica à “formação do imaginário” tenha algo a ver com o besteirol que ela escreve. Ao contrário: o que ela diz – não irei reproduzir a estrovenga, procurem lá – eu de bom grado incluiria no rol de asneiras que se produz a favor e contra a “formação do imaginário”. É um assunto um pouquinho acima da alçada de fofoqueiros de sacristia e de leitores da Mônica, aos quais não ocorre que perceber a estupidez alheia não os impede de cultivar a sua própria estupidez.
Já para aqueles que realmente se interessaram em compreender o que chamei de “Literatura para covardes” na última e mais extensa parte de meu livro, posso dizer que, para além do texto que consta no Contra, minha posição a respeito ficará mais clara em um ensaio de maior extensão que redigi para uma publicação coletiva a sair em breve.
Ju Ginger afirma também que tenho a desfaçatez de mudar de discurso, já que o antigo não estaria mais dando muito dinheiro, e que eu deveria pedir desculpas ao meu público. Segundo ela, eu teria chegado ao ponto de deletar minhas rede sociais apenas para ocultar a vergonha pretérita. Isto é, além de falar de um livro que não escrevi, ela fala de uma pessoa que não sou eu.
Até hoje, mantive apenas três empreendimentos on-line. O primeiro deles data de 2014 e foi Nabuco – Revista Brasileira de Humanidades, lançada através de um crowdfunding e mantida com assinaturas dos leitores. Era uma revista dedicada principalmente ao ensaísmo histórico e sociológico e à crítica literária. Em 2022, lancei Convivium – Seminário Permanente de Humanidades, que permanece ativo (embora tenha passado um ano e meio parado, já que eu estava interessado em outros estudos). Convivium jamais prometeu “vida intelectual”, “virtudes”, “amadurecimento” ou qualquer outra ideia pronta de marketing digital. Aqui está uma aula; e aqui está um trecho do lançamento do segundo módulo: vocês acham que isso é conversa de quem quer ensinar os outros a ser supermaravilhoso? Por fim, dei no Seminário de Filosofia no ano passado o curso “Introdução à filosofia de Olavo de Carvalho”. O programa das aulas, que foi seguido, encontra-se aqui.
Nada do que escrevi e ensinei tem parte com a picaretagem reinante na direita cultural empreendedora (se é que se pode falar de tal coisa).
Como a hora já vai adiantada e a lanchonete precisa baixar as portas, vou até o caixa para fechar a conta. Noto, com estranheza, que nela consta um quibe que não comi. Olho para o mostruário e vejo que ele ainda está lá, solitário e engordurado, sob o olhar fixo da atendente. Entre contestar a conta e simplesmente partir apressado da bodega, a fim de não prolongar nas narinas o odor de óleo reutilizado há semanas, decido pela última opção.
Tome aqui uns tostões, Ju Ginger, e fique com o seu quibe.
Eu tive o desprazer de ler uns comentários dela a esse respeito, bem como de ouvir o começo do aludido áudio. De pronto me lembrei de seus posts no Instagram, sua refrega com Ítalo "Marsinho" e a "direita do condado" de Pedro Sette-Câmara. Sou testemunha que não foi essa tal de "Ju Ginger", nem muito menos sua corriola que detêm o pioneirismo em diagnosticar as distorções desse movimento "intelectual"/cultural. Nesse esteira, começo a achar apropriado quando alguns falam por aí em debates internéticos : "Qual a produção intelectual/literária etc. de fulaninho, que o autorize a estar aqui difamando os outros?!"
Aí eu pergunto: "qual a obra de Ju Ginger e sua corriola"?
Excelente texto, como sempre. Eu lembro bem dos teus pequenos ensaios lá no teu perfil do Instagram (In memoriam). Te acusar de querer pegar carona na decadência da panelinha marketeira é o cúmulo.