Melk Ferreira e a fascinação pelo banal
De quando a mentalidade de tiktoker encontra a estética do fragmento.
Melk Ferreira, que administra uma página no Instagram chamada “A Formação do Imaginário” e promove atrocidades como o “Tinder Literário”, resumiu numa frase que ele parece considerar muito poderosa as suas impressões acerca de meu livro Contra a vida intelectual: “Meu Deus, que livro ruim!”. É uma confirmação de que valeu mesmo a pena mencioná-lo de raspão no livro como alguém que exemplifica fartamente alguns dos males que lá discuto.
O tom de fuxiqueira que comenta com a vizinha a última novela das 8 não lhe é estranho, tenho de admitir, pois nos stories que compartilhou ontem há certo estilo – valha a palavra – que recordo mesmo abundar naquela página do Instagram. Como veremos adiante, Melk reclama por eu não ter me demorado mais na crítica a ele. De minha parte não irei reclamar que ele, para dar exemplo, tampouco o tenha feito em relação ao meu livro, mas apenas observar que seu juízo empombado, “Meu Deus, que livro ruim!”, não se traduz em nenhuma crítica que seja objetivamente dirigível ao livro: é uma frase tão inócua quanto “Meu Deus, que livro bom!”.
Do alto da posição de quem realmente teria lido – e muito bem – o meu livro, ele critica os meus entusiastas não-leitores, dos quais até o momento eu não tinha conhecimento (como tinha dos detratores não-leitores): “Eu duvido que os fãs do livro [sic] tenham se dado ao trabalho de... lê-lo. Aqui é Brasil: a galera gosta de crítica pela crítica, treta pela treta e fofoca pela fofoca. O livro está sendo congratulado apenas por ‘criticar quem eu não gosto’. Ou seja, é a autocongratulação pelo nojinho!”.
Não consigo segurar o riso ao ler a expressão “fãs do livro” (será ato falho de quem trata literatura com a mesma disposição de um tiktoker leitor de Harry Potter?), e chego quase a abrir um sorriso completo – e de completo desespero – ao notar a imperícia de espalhar exclamações a torto e a direito (a cada exclamação, ouço bater as tamancas de quem imagina ter dito algo muito irônico). Mas a graça logo passa e me vejo na necessidade de observar que talvez a autoridade de leitor que realmente leu e não gostou não lhe caiba tanto assim.
Melk afirma que escrevi “um livro de notinhas feito com posts de Instagram e Facebook”; logo “ali não tem livro”.
Bom, nenhum dos textos presentes no livro foi escrito para Facebook, no qual não tenho perfil desde 2016 (se recordo bem). De todo modo, afirmo no “Prólogo a um panfleto fragmentário” (que pode ser lido na íntegra aqui) que o livro “surge do arranjo impremeditado de intervenções minhas em redes sociais e blogs, às quais agora, irmanando-as a textos inéditos, dou fecho para remediar um pouco de sua triste orfandade”. A maioria absoluta dos textos não surgiu de Instagram, no qual não tenho mais perfil. Mas nada se poderia alegar contra um livro aludindo apenas ao meio de onde surgiram seus textos.
O fato de Melk não escrever nada que preste no Instagram não permite a generalização de que seja impossível compor um livro bom recolhendo exclusivamente textos veiculados naquela rede. Ele não chega a afirmar isso, é verdade, mas é um lapso argumentativo que se mantém em seu horizonte ao afirmar que “a coisa mais contraproducente é você criticar a produção de conteúdo de Instagram e outras redes com... um livro de notinhas feito com posts de Instagram e Facebook”. Talvez esse giro retórico funcione com sua audiência, mas aqui fora todos nós percebemos com clareza: contraproducente é, isto sim, desqualificar um trabalho alegando dados circunstanciais e fugindo ao comentário direto de seu conteúdo. E quando tenta, mais adiante, apontar o que seria uma possível contradição em alguns dos textos que compõem o livro (comento daqui a pouco), Melk mete os pés pelas mãos.
A fuxiqueira que solta exclamações não nos poupou de sua imaginação quanto às origens editoriais do livro: “[O livro] É só um apanhado de notas nem sempre conexas. Eu nem vou colocar isso na conta do Ronald. Acho que os editores aproveitaram essa onda de crítica aqui do Instagram, chegaram no pobre do moço e falaram: junta aí as notinhas e vamos aproveitar pra vender. Vai ser sucesso!”.
A ideia do livro, como quem acompanha este blog sabe, é inteiramente minha, e fui eu que busquei editores. (Vocês podem até revisitar um post de Antonio Risério, que leu os originais e gostou, dizendo ter recomendado o livro a outra editora que não a Kírion). Melk me mede pela sua régua, e não irei me queixar disso por saber que ele não dispõe de medidas mais amplas. Mas a torpeza de sua insinuação o coloca muito abaixo daqueles que ele critica por apreciarem apenas a “treta pela treta”. O entusiasta de tretas talvez tenha pela menos a dignidade de preferir tretas reais a tretas irreais. Já Melk, para me atacar moralmente (eu seria, segundo ele, alguém disposto a ceder ao aliciamento de editores com a só perspectiva de obter lucros), considera necessário recorrer a circunstâncias irreais. Haja formação do imaginário, hein.
Logo nas primeiras páginas de Contra a vida intelectual, adverti que “a unidade deste livro depende, em uma medida bem além da usual, da inteligência do leitor”. E, em texto anterior deste blog, comentei que, “para ensinar, muitas vezes é preciso desistir de ser pedagógico. Essa desistência está na origem deste livro”. Mencionei a propósito Guide to Kulchur de Ezra Pound. É um livro propositalmente confuso que desarma o leitor para torná-lo capaz de perceber por conta própria determinadas coisas. É um mosaico, é um apanhado de doestos, é um sarapatel crítico.
Tenho grande predileção por livros com essa feição, isto é, obras caóticas com sabor de apanhado de anotações, isso quando já não o são materialmente apenas um imenso apanhado de anotações, como os Cadernos de Marina Tsvetáeva (a quem, aliás, dedico um dos textos do Contra).
Donde também meu apreço pela “estética do fragmento” que deu tanto pano pra manga no romantismo alemão. É claro – infelizmente, preciso enunciar o óbvio – que não cobro comparações com Pound, Tsvetáeva ou Novalis, comparações das quais temo não sair com os melhores créditos. Mas me permito pelo menos apontar esse campo de confluências em que meu Contra habita. Ele pode ser um livro bom ou ruim, melhor ou pior, mas definitivamente sua precária unidade atende a certos preceitos estéticos (ou mantém uma tensão com eles) e nada tem de gratuita. Considero inclusive que a elisão e o fragmento se prestem particularmente bem a escritos de natureza combativa.
Melk Ferreira afirma que não me aprofundo na crítica a ele e outras pessoas citadas; chega, mais uma vez recorrendo à dialética do fuxico, a dizer que eu teria poupado maiores críticas a Italo Marsili por ser um autor publicado pelo mesmo grupo editorial que lançou meu livro. Se bem que me pareça sobrar no curto texto que dedico à ideia de “formação do imaginário” elementos críticos a alguém do calibrezinho de Melk (só citado, repito, de raspão, e numa nota de rodapé), não deixo de concordar com ele quanto à observação de que “Ele [isto é, eu] não consegue fazer um ‘imbecil coletivo’ da direita”.
Não é que eu não consiga: jamais pretendi tal coisa. O motivo, como esclareci nesta entrevista, é que personagens como Melk estão muito abaixo dos personagens contra os quais Olavo de Carvalho se insurgiu na década de 1990:
Entendo a comparação, mas tendo a recusá-la. Olavo de Carvalho lidou na década de 90 com um material que, para todos os efeitos, era bem melhor que o material com o qual lido. Em O imbecil coletivo ele estava se batendo com Leandro Konder e sua turma, com gente que em geral tinha obra, que tinha bibliografia, gente que poderia estar errada e até escandalosamente errada, cega de tanta ideologia, mas que era gente ainda naturalmente inserida no fluxo da cultura, do debate de ideias, ainda que um debate avacalhado. Não posso dizer o mesmo acerca das pessoas que habitam esses nichos on-line de “vida intelectual”, “formação do imaginário”, “temperamentos” e “virtudes”. É uma gente que, se sequer vislumbrasse por um instante o que é realmente liberdade criativa e o que é de fato a vida de escritor, de intelectual, de professor que não apenas repete palavras dos outros, tomaria um choque tão grande, mas tão pesado e traumático mesmo, que nunca mais voltaria a pensar nessas coisas.
Ou, dito de outro modo: a mediocridade só pode sofrer críticas até uma altitude bem rasteira. E estamos, nesse caso, no nível do Tinder Literário.
Nesse nível, as confusões de meu intérprete não poderiam ser mais risíveis, ainda que esperadas, no único momento em que tenta fazer alguma crítica específica a uma passagem específica do livro. Escreve: “Em um determinado momento, o Ronald escreve que toda literatura, sobretudo a poesia, é literatura para covardes. No momento seguinte, ele afirma que os poetas têm fascinação pelo difícil. É o estranho caso do covarde que escolhe o caminho mais árduo”.
Não é não: é, na verdade, o estranho caso de quem pensa compreender com facilidade, sem consegui-lo, aquilo que para um leitor minimamente atento não seria difícil.
Ele se refere ao meu texto “A fascinação do difícil”, pertencente à última parte do livro, “Literatura para covardes”. Para qualquer autor, é tarefa das mais ingratas oferecer a tabaréu elementos que o auxiliem a melhor compreender aquilo que ele nem sequer pretende compreender. Mas aqui estamos, e aqui está mais um trecho do “Prólogo”, desta vez pertinente à “Literatura para covardes”:
A ambiguidade é intencional e produtiva. Por um lado afirmo que em toda atividade literária há um elemento de covardia e capitulação — e nesse sentido a literatura, toda ela, é literatura para covardes. Por outro lado afirmo alguma bravura ou tenacidade a ser conquistada por todo verdadeiro criador, na redação de poemas e romances como em tudo mais — e nesse sentido a literatura vadia e deambulatória de meu ensaísmo será literatura para covardes à revelia de sua covardia, pedra de tropeço para aqueles que ainda temem o prazer das palavras e não se arriscam ao livre jogo delas. Lá se verá que aqueles que se permitem sofrer uma influência mais profunda da cultura também necessitam vigiar-se para não baratear o Espírito. Acossa-os os mesmos problemas que acossam o aventureiro de marketing digital, só que num nível mais sutil e elevado de criação.
O trecho destacado em negrito é fundamental para compreender o que vem a seguir. Ele estabelece a zona obscura em que irão se mover os últimos – e melhores, a meu ver – textos do livro. Neles abandono a situação calamitosa de certa fatia atual da cultura brasileira e volto minhas armas contra aquilo que há de mais elevado, pois mesmo nas alturas de um William Blake precisamos nos precaver contra algumas tentações fáceis. Boa parte delas nos chega não de maneira explícita, mas no próprio bojo da língua que falamos e escrevemos. A esse respeito, escrevo no texto “A fascinação do difícil”:
O universo linguístico é manipulador e manipulável. É sobretudo manipulador quando falamos e somos quase falados pela linguagem na conversa cotidiana, no tatibitate das expressões consagradas, das palavras gastas pelo uso inconsequente a que nos assedia o Monstro [de que fala William Burroughs, referindo-se ao horizonte fechado que, de certa forma, toda linguagem nos impõe]. É sobretudo manipulável quando o elevamos acima dessa faixa, quando escapamos do monstro e começamos a fazer literatura contra a facilidade, pela dificuldade. A literatura redime a linguagem ao fazer da sua opacidade não uma carência, não uma desvantagem, mas um trunfo, a cartada final na mesa em que só há cartas marcadas e tudo o que se aposta possui um sentido estiolado.
Não é fácil, não é sequer prazeroso sempre. Ir além dos valores linguísticos já compartilhados e estabilizados numa sociedade é análogo a desejar substituir a abóbada celeste por outro limite que nos seja menos limitante, é análogo a desejar substituir a pele que limita nosso corpo por outro órgão que não nos separasse tanto da unidade cósmica em que estamos inseridos. Não é a pele o órgão mais extenso do corpo, e não seria credível imaginá-la ainda mais extensa, a envolver não só a nós mas também a todas as coisas e seres numa unicidade indestrutível, com uma tez enganosamente macia, já que na verdade forjada no metal impuro de tudo quanto existe? A nossa pele já foi unida à placenta, a placenta já foi unida ao útero, e nós não esquecemos nem jamais esqueceremos o conforto de ser uma pessoa e ao mesmo tempo mais de uma pessoa. Ansiamos pelo Útero.
Pior, nos refestelamos nessa ânsia, voltados que sempre estamos para os afazeres da linguagem. Para plasmar novas unidades dentro da limitação do cosmos linguístico, desenvolvemos um instinto superior, uma espécie de gozo cifrado que não corresponde a nada que se encontre no reino puramente animal. (...)
Os limites do cosmos linguístico precisam ser expandidos por meio de investidas rumo a fronteiras antes não vislumbradas. É certo que aquilo que num momento é difícil pode depois se tonar fácil, gratuitamente acessível, e que aquilo que era fácil pode se tornar difícil de recuperar numa época posterior. A fineza de um artista – isto indica o quando ele está ciente das condições em que cria – mede-se pela sua lucidez ao notar onde reside a dificuldade de sua época, para a partir dela reencontrar a senda até as suas dificuldades pessoais mais imprevistas, foco irradiador de pesquisas ulteriores.
Suas criações, novas unidades que constrangem e são constrangidas pelo cosmos linguístico, pelo Universus, são as pistas que vai nos deixando para que, de nossa parte, aprendamos a partilhar da fascinação do difícil.
O escritor, enquanto alguém que vive, em alguma medida, dentro de um universo linguístico próprio, experimenta a todo momento a tensão entre o aspecto manipulador da língua (“o Monstro”) e seu aspecto manipulável (a cultivar o “gozo cifrado”). Há um óbvio dilema moral, que é vivenciado sobretudo como dilema de ordem técnica. Esse dilema pode se resolver em boa literatura na medida em que o autor alcançar algum grau de autoconsciência do problema que lhe permita investir rumo a soluções que não prescindam de sinceridade quanto à sua situação existencial. Como escrevo noutro texto do livro (“Uma outra vida”):
O escritor, o sério como o medíocre, ouve o chamado aliciante da coragem fácil, que, se aceito, o fará imaginar-se um herói das letras, mesmo que seu modelo de heroísmo romantize o fracasso e a desistência. Suas qualidades e falhas humanas reais serão adornadas pelas qualidades imaginárias com que um ideal literário o galardoa.
Se ele resiste – e todo escritor, ferido de uma covardia fundamental, experimenta dificuldades em oferecer resistência –, alcança resultados de qualidade permanente. Resultados esses que, por outro lado, poderão noutro momento servir de fórmulas acomodatícias à covardia literária alheia. E até a vitória de Rimbaud, que discuto rapidamente em um dos textos, poderá servir de oportunidade para o autoengano, como o dos poetas que mais celebram a si próprios quanto mais impotentes são (o que mostraria, como no caso de muitos poemas de Ungaretti e de Drummond, que a autodepreciação do poeta é apenas uma face recorrente de sua autocelebração enquanto marginal, excluído, visionário incapaz de ação).
Não incorro na contradição que Melk pensa encontrar em meu texto, que se dirige a pessoas capazes de compreender a fascinação do difícil, e não a instagrammers capazes apenas de fascinação pelo banal. A arrogância que ele me atribui é apenas uma projeção de sua ignorância.
Ronald, essa resposta talvez nem seja lida integralmente por esse Melk. Mesmo porque a ideia dele era apenas a "lacração". fiquei a pensar se de fato a polêmica merecia a sua longa e mais uma vez obrigatória reação ao charlatanismo rastaquera das pessoas que integram o púlpito pentecostal da dita "formação do imaginário". enfim, eles seguirão, pois são imunes à realidade!
Excelente resposta ao Melkualira.